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segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Que estranha esta coisa chamada morte

É muito estranha esta coisa que chamam de morte. Hoje a pessoa está aqui, vc pode escutá-la, vê-la, senti-la. De repente, acabou. Nunca mais aquela voz, nunca mais aquela pessoa na sua frente...

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Faz alguns dias eu perdi a minha vó. Estranho.


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Ela já estava velha, não estava bem de saúde, estava cansada, e por mais que pensássemos que já estava chegando a sua hora de partir e de libertar-se desse corpo que a prendia aqui entre nós, quando aconteceu, foi/está sendo muito ruim. 

As lembranças se misturam, às vezes eu penso em quando ela era mais nova e em quando eu passava o dia andando atrás dela, falando sem parar. Depois, me lembro de como ela foi envelhecendo e mudando e, cada vez mais, se fechando dentro de si, como se quisesse se encasular para partir...

é o ciclo natural da vida, mas não deixa de ser muito estranho.

Eu lembro de tanta coisa...

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Ela comprava uma caixa de chocolate toda vez que recebia a aposentadoria e dava um bombom para cada neto, quem chegasse à casa dela primeiro, pegava o melhor bombom.

No fim do ano, ela chamava todo mundo pra fazer bolacha de natal. As crianças tinham que ajudar a pintar as bolachas, era muito divertido.

Ela fazia sopa de frango e eu AMAVA comer a carne de pescoço da galinha.

Eu adorava quando ela fazia batata meio refogada, meio cozida, temperada com cebola, alho e cheiro verde (faço batata desse jeito até hoje).

Quando eu era bem pequena e queria fazer xixi, ela fazia cadeirinha pra eu fazer xixi na grama.

Quando ela ía plantar no quintal, eu ía junto e arrancava todos os cabelos dos milhos.

Ela me contava todas as histórias da bíblia (e eu me lembro até hoje de todas).

No natal, montávamos juntos o presépio (ela, eu e meus primos) e ela gostava que todos fossem até a casa dela para olhar como ficava bonito.

A lembrança mais antiga que tenho da minha vida foi de um dia, quando eu levantei de manhã, só estava ela em casa e eu pedi pra ela me fazer um quick de morango, ela fez e eu tomei.

Ela foi minha madrinha de crisma.

No meu casamento, ela levou as alianças até o altar.

Ela foi ministra da Eucaristia, dava curso de batismo, foi catequista, preparava as apresentações da igreja. Levava comunhão aos doentes, que não podiam sair de casa.

Ela era a bisa da minha filha.

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De repente, sem a gente perceber direito, a idade foi chegando, e ela de tão ativa que era, foi se recolhendo, ficando cada vez mais calada e um dia se despediu de todos nós, deixando uma imensa saudade. Saudade da minha infância, que não seria a mesma se não fosse ela. Saudade das nossas conversas, saudades da mulher que ela foi, da criança que eu fui...

Agora está tão difícil... 
não chamá-la mais para comer, 
não vê-la mais andando pela casa, arrastando o chinelo, 
não escutá-la falando que vai chover, que vai dar sol, que o tempo está brusco,
não escutá-la mais contando as mesmas histórias mil vezes,
não ouví-la reclamando que tinha muita comida no prato, mas, mesmo assim, vendo-a comer tudo...

Tantas vezes eu me irritei com tudo isso. Com as chatices que a velhice traz, tantas vezes eu deixei de puxar conversa por não querer escutar as mesmas coisas... e hoje ela não está mais aqui... ela se foi... 

Talvez esse mundo já não fosse mais dela, talvez ela já estivesse muito cansada, talvez ela já não quisesse mais continuar.

Mas, eu queria muito poder viver de novo aqueles tempos... quando éramos eu e ela andando pela chácara. Quando eu dizia "Vovó" e ela cuidava de mim, sem eu saber, sem eu perceber...



Vovó, vc está finalmente livre 

Vc plantou sua semente, agora descanse. 

Desculpe se eu não tive paciência o tempo todo, se a minha juventude, muitas vezes, não foi capaz de entender a sua velhice.

Mas saiba que até nisso vc me ensinou a ser uma pessoa melhor, a olhar a pessoa por trás da chatice, da implicância, do preconceito. 

Essa foi a última lição que vc me deixou.

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